Eu não gostava das manhãs. Costumava ler madrugada adentro escutando as rádios de músicas antigas, lentas e tristes. Quanto mais tristes, melhor. Acho que eu devia ser a única menina do terceiro ano que ainda ouvia rádio. Talvez a razão desse hábito fosse a ilusão de companhia na voz do locutor.
Subir as escadas para a sala de aula era a primeira tortura do dia. Riam do meu cansaço, da falta de motivação em falar sobre a boysband mais adorada do mês, da indisposição para assuntos adolescentes. Cheguei a tentar interpretar papéis mais convenientes à minha idade para ser aceita. Não adiantou, o ridículo do resultado piorou minha situação.
Era junho. O frio da manhã me fazia ainda mais infeliz. Atrasada para a primeira aula, maldito alarme! Entrei de cabeça baixa, apertei o passo. Nem olhei para a professora de Biologia, que falava algo sobre as fases do embrião humano. Procurei o lugar de sempre, no fundo da sala. A capa de invisibilidade que me protegia das brincadeiras de mau gosto. Para minha surpresa e raiva, o refúgio fora ocupado.
Ela sorriu de boca e olhos. Eu reparei nos cabelos, adorei a juba ousada e cacheada, mas a irritação de ver minha cadeira ocupada me impediu de retribuir o cumprimento! Sentei ao lado da novata, no lugar que havia sobrado. Percebi que ela cantarolava bem baixinho uma música do filme Grease-Nos tempos da Brilhantina. Quase um sussurro enquanto apontava o lápis “...Hopelessly devoted to you”. Não acreditei. Alguém da turma com gosto musical parecido com o meu? Nunca achei que isso pudesse acontecer! Cheguei a pensar que fossem os meninos brincando com a minha cabeça, para depois desdenharem das músicas de “gente velha”. Mas algo na inocência do olhar vago enquanto o apontador girava me encorajou.
-Olá! Eu me chamo Carla.
-Sou Rosana! Vim transferida de Salvador. Comecei hoje na escola, mas cheguei em São Paulo há duas semanas. Ainda me acostumando.
O trabalho de Biologia nos aproximou. Conheci a casa de Rosana, os vinis dos “Beatles” e do “Creedence”. Folheei os livros de Hermann Hesse que enfeitavam a estante. A angústia de Demian me parecia muito mais interessante do que as mitocôndrias! Dançávamos na sala quando o texto sobre as fases da mitose nos cansava. Finalmente alguém para dividir horas leves! Que alegria escutar sobre o sol na praia de Amaralina e o sorvete da Ribeira. Salvador ganhou cores de conto de fadas na voz da minha querida.
Os dias começavam melhor porque eu sabia que a encontraria. Os primeiros pensamentos das manhãs eram dela e para ela. Sensações de montanha-russa me tomavam no caminho da escola. Eu ansiava pela fragrância de morango da Giovanna Baby que Rosana usava.
Depois de noites insones e sonhos confessados ao nada, decidi que precisava falar. E daí se ela zombasse, se nunca mais me olhasse? Impossível sustentar a proximidade sem me corroer de desejo. E até a palavra desejo me assustava. Eu, que vivia de estudos, músicas cult e livros, nada sabia sobre a fome da presença do outro. Agora, me consumia de inanição e me afogava na culpa por estar prestes a perder a única amiga que fizera naquele colégio de elite, onde bolsistas nunca foram bem recebidas pelos pares.
Eu sabia que a casa estaria vazia. Pais e irmão trabalhando. Ninguém para bisbilhotar a conversa. Melhor assim. Sem risco de humilhação. Coloquei o disco do Grease. Juntar finais e começos é obra de meu agrado. Olivia Newton-John testemunharia o drama.
-Não podemos continuar essa amizade!
-Posso saber o motivo?
As palavras acabaram num beijo de entrega. Eu me desfiz na saliva e no perfume de morangos. Unidas nos transformamos. Depois do fim, começo.
Rosana falou com propriedade de Baiana forte:
-Gosto de você desde o primeiro dia. Esperei com paciência. Confiei no destino. Algo em mim notou que seria possível. Além do mais, escutamos as mesmas canções e lemos os mesmos livros. Somos feitas uma para a outra! Espelhos.
Rosana caiu na risada, e eu flutuei no som do riso.
-Quem eu sou agora?
-Você é Carla. Moça bonita, de olhos vivos e a pele mais perfeita que eu já vi. É a mulher que eu amo e que eu espero que me ame também.
Naquele dia, fotografamos. A primeira foto é nossa aliança. Anos passaram, os desafios mudaram. Quando nos perguntamos se vale a pena, retornamos à primeira foto e a certeza mais profunda nos ocupa a alma.
Escrito por Marissol Lourenço
Médica Psiquiatra, Analista Junguiana e Escritora
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