Quo Vadis, ou melhor, o que você quer para a sua vida?
Hedi é o cara do filme. A câmara acompanha-o quase o tempo todo. De início vemos ele ajeitando a gola da camisa, colocando a gravata e dando o nó com a destreza de quem conhece esse ritual, porque o pratica cotidianamente. Ele dirige seu carro, fuma bebe água, conversa com sua futura esposa, tenta vender os carros Peugeot para a concessionária em que ele trabalha, vai à praia, mergulhar, arranja uma namorada, transam, passeia com ela, vão ao cemitério, fazem planos, revela para a amante que é isso que ela é.
No início do filme Hedi praticamente nunca sorri, seu semblante é fechado, sombrio, encucado, está sempre jururu. Sua mãe organiza e determina tudo sobre seu casamento, seu irmão Ahmed é apontado por ela como sendo o tal, seu patrão não o libera para a lua-de-mel e sua bela noiva Khedija é praticamente uma estranha. Hedi é um homem sufocado, uma vida humilhada, vive como se fora um zumbi à serviço do desejo alheio. É isso que a câmara mostra um homem comum, fazendo coisas comuns de forma comum. Tentativa de flagrar aquele pedaço de vida tão caro ao realismo. E assim é, vemos, pedaço por pedaço, as miudezas de sua vida.
O prazer de Hedi Barrak é desenha. Nas horas vagas, deixa o lápis deslizar criativamente sobre o papel, construindo formas humanas com qualidade e certa originalidade. Seu sonho oculto é publicar revistas de histórias em quadrinhos, fazer disso sua profissão, a ocupação principal em seu viver. Seu traço tem fortes elementos de um erotismo sofisticado.
Com Rym, a amante, ele percebe pela primeira vez um sentimento impossível de definir. Talvez por causa disso brinca, transa, diverte-se, ri aos borbotões, expressa-se alegremente, entrega-se ao ritmo da dança em estado de êxtase, ou seja, participa de tudo de que antes se negava. Mas todo existir cobra seu preço. O jovem artista vai ter que decidir se mantém o compromisso de casar ou seguir a vida com a amante — que é dançarina em um resort — para um caminho cheio de surpresas e incertezas.
Hedi bem poderia ser um personagem de um dos romances de Jean-Paul Sartre, filósofo existencialista francês que desenvolveu o conceito de que o homem está condenado à liberdade. À liberdade e à solidão. Responsabilizar-se por seu próprio destino é um ato profundamente solitário. De alguma maneira Hedi vai perceber que a gratuidade da existência e a angústia de se estar no mundo faz do ser humano uma criatura trágica. Se ele é obrigado a seguir cegamente certas normas e rituais sociais, se a pequena, torna-se apêndice de outras existências. Se rompe com todos os laços que o aprisionam e sufocam, vê-se mergulhado num caos de possibilidades. Suas escolhas têm consequências, embora nem sempre as que se esperava.
O final da projeção ressalta um detalhe que não é sem importância, isto é, não nos deixa esquecer que o nome do filme de Hedi.
“A Amante” (“Hedi”)
Direção: Mohamed Ben Attia
Outros filmes de Mohamed Ben Attia: Like the Others, Selma, Wave, e Dear Son
Roteiro: Mohamed Ben Attia
Música: Omar Aloulou
Com: Majd Mastoura (Hedi), Rym Ben Messaoud (Rym), Sabah Bouzouita (Baya), Omnia Ben Ghali (Khedija), Hakim Boumsaoudi (Ahmed)
Data de lançamento: 31 de maio de 2018
Marco Guayba
Ator, diretor, preparador de elenco e Mestre em Letras
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