"O artista cria um novo símbolo com o pincel " (El Lissitzky}
O fim do século XIX e o início do século XX em Viena foi um momento histórico que marcou todo o resto do século passado. Ocorreram transformações radicais no pensamento ocidental, na arte e no comportamento sócio-político, Nietzsche, Freud, Hoffmannsthal, Otto Wagner, Schnitzler, Klimt e outro participaram de uma fase rica de descobertas e de fabulosa efervescência cultural e turbulenta revisão de valores.
Egon Schiele (Noah Saavedra) é um importante pintor austríaco e sua arte emerge como resultado desse caldeirão em ebulição. Ele foi considerado um dos grandes representantes do expressionismo. Teve vida curta e obra intensa Sua ousadia ao pintar corpos nus angustiadamente erotizados chocou a sociedade da época. Foi preso por fazer pinturas consideradas moralmente ofensivas para crianças, mas se safou de um processo em que era acusado de sequestro e de ter feito sexo com uma menor. O exame médico revelou que a moça era virgem, portanto, a acusação era Infundada.
O filme aborda, na forma de flashbacks, a vida do pintor entre 1910 e 1918, data esta que coincide com o fim da Primeira Grande Guerra com a publicação de O Tabu da Virgindade por parte do doutor Sigmund Freud. Schiele fez seus estudos artísticos na Akademie der Bildenden Künste, instituição que abandonou porque seu espírito inquieto e inventivo não se coadunava com as fórmulas académicas restritivas presentes no ensino da pintura. Formou o grupo da Nova Arte e caiu em campo para realizar o seu trabalho.
Gostava de pintar mulheres nuas, principalmente as muito jovens, mas diferentemente de outros artistas que costumavam evidenciar o belo do corpo humano, ele pintava formas intensas, expressivamente deformadas, revelando corpos em agonia orquestrando um desastre anímico. Linhas distorcidas que pareciam suplicar que possamos aprender a apreciar o modo como um sentimento de falta de completude reclama desesperadamente por um gozo que deveria estar ali no limite do seu vir a ser.
A morte e a Donzela (1915) é considerada uma de suas pinturas mais importantes. Sua namorada ''Wallly" Neuzil (a bela e expressiva Valerie Pachner), uma modelo que ele conhecera no atelier de seu amigo Klimt (Cornelius Obonya), posara para esta e muitas outras de suas telas. A obra em cores tristes com predominantes tons que lembram o limo - mostra o abraço de uma mulher com uma figura terrivelmente melancólica. Ambos estão vestidos, as faces são vistas com clareza e as figuras inclinam-se para a esquerda.
Há outro trabalho de Schiele que faz contraponto a este: O Abraço (1917). Aqui o homem e a mulher estão nus, as faces não são claramente vistas e as figuras inclinam-se para a direita. Os corpos dos amantes têm um vigor impressionante. A tela como um todo parece viva, as cores e os músculos parecem pulsar, porém, a ideia de desespero, de sexualidade agonizante e de abandono ainda está presente.
O roteiro do filme de Dieter Berner prendeu-se mais aos fatos da vida do artista que às motivações para uma obra tão contraditoriamente repulsiva e atraente. Estão lá a comunidade artística de Krumau, os ciúmes recíproco de Egon em relação a sua irmã Gerti (Maresi Riegner) e vice-versa, a modelo e atriz Moa, o casamento com Edith Herms (Marie Jung), a vida difícil devido à falta de dinheiro, o teatro de variedades em que há um show de nudes, a lembrança da morte do pai por sífilis quando o pintor tinha apenas 15 anos, a aventura estética e amorosa com Wally, a tragédia mortal da epidemia de gripe espanhola. Mas, apesar de tudo isso e da brilhante reconstituição de época e da bela fotografia, saímos do cinema com a sensação de que faltou algo ao filme para tocar de forma potente o cerne da dor ou da vida de uma personalidade que foi capaz de construir uma obra tão impactante.
É possível que o que tenha faltado seja uma hipótese ou provocação sobre o fundamento de um estilo que se quer completo e que expõe uma experiência fragmentária com uma Afrodite tão presente e, ao mesmo tempo, inexplicavelmente inalcançável. Construindo uma escrita como se fosse uma teogonia de corpos em torturante êxtase - a exemplo do quadro que dá nome ao filme -, no ritmo de uma melancolia infinita que a vai consumindo de forma continua, a obra de Schiele nos deixa sempre com uma sensação implacável de que a dor de existir também pode se fazer arte.
“Egon Schiele – Morte e Donzela” (Tod und Mädchen) – Drama/cinebiografia artística - 2018 - lh 50
Direção: Dieter Berner
Roteiro: Dieter Berner, Hilde Berger
Trilha Sonora: André Dzieuzuk
Direção de Fotografia: Carsten Thiecle
Direção de Arte: Gou Weidner
Figurino: Uli Simo
Produção: Franz Novotny, Bady Minck, Alexander Dumreicher-Ivanceanu, Alexander Glehr
Com: Noah Saavedra, Maresi Riegner, Valerie Pachner, Marie Jung, Elisabeth Umlauft, Larissa Breidbach, Thomas Schubert
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