Crítica: Nos vemos no paraíso




"A arte importa bem menos que a vida, mas seria pobre a vida sem artel (Robert Motherwell) 

 O humor e a poesia em um monumento às criaturas vivas da arte. Édouard Péricourt (Nahuel Biscayart) é um artista sequestrado pela guerra que salva a vida de um ex-contador, Albert  Maillard (Albert Dupontel), outra vítima da crueldade humana,  às vésperas do Armistício que daria fim à Primeira Guerra Mundial. O tenente Pradelle (Laurent Lafitte) tinha provocado, sem nenhuma razão de tática militar, a batalha inútil na qual Maillard quase perdeu a vida e Édouard ficou com o rosto desfigurado. Os registros históricos mostram que os "gueules cassés" (caras quebradas) foram uma das marcas dessa insanidade coletiva e ficaram como saldo da ignomínia dos líderes franceses da época 

Segundo o historiador Eric Hobsbawn a Primeira Grande Guerra foi uma terrível catástrofe civilizatória, uma verdadeira calamidade em termos humanos. Representou o colapso da civilização ocidental do século XIX, seu estilo de vida, sua ordem social e seus valores éticos e políticos. Uma guerra mundial sem heróis, sem um lado que se pudesse defender ou honrar Envolveu a maioria dos Estados europeus, contando, inclusive, com tropas de outros continentes - participaram também soldados americanos, canadenses, indianos, africanos etc. A Tríplice Aliança de França, Grã­ Bretanha e Rússia, de um lado, e a Alemanha e seus aliados, de outro, foram os responsáveis por uma carnificina sem precedentes. O objetivo de todas as grandes potências era uma redivisão do mapa terrestre visando maior poder e lucro. Foi uma guerra moderna, uma inédita guerra de trincheiras, de armas novas e letais.  O resultado foi uma tal devastação dos países diretamente envolvidos que, de certa maneira, pode-se dizer que todos foram derrotados. 


 A chamada Frente Ocidental - onde França e Alemanha bancavam os deuses da guerra - era uma fábrica de destruição de vidas humanas: trincheiras entulhadas de sacos de areia, barreiras protegidas por rolos de arame farpado, uma quantidade absurda de soldados e a terra de ninguém onde os homens eram dizimados pelo bombardeio da artilharia e do fogo das metralhadoras em meio ao horror de crateras cheias de água e cadáveres em decomposição. O cheiro da morte imperava virtualmente absoluto. Foi nesse inferno que a amizade de Albert e Édouard foi sacramentada. 

Com o fim do conflito bélico os dois amigos armam dois planos de vingança: um visa desmascarar o tenente que, agora, tenta fazer fortuna com os corpos das vítimas de guerra. O outro, uma fraude nos monumentos aos mortos, busca vingar o próprio fato da França ter se envolvido em tal conflagração obscena. Uma órfã de guerra, Louise (Héloise Balster), entra na história e se torna a intérprete dos grunhidos de Édouard. Este criador sensível passa a inventar uma máscara para cada momento, situação ou sentimento. O ardiloso rapaz cria obras de arte para dar uma forma ao vazio em sua face. Com o tempo incorpora os mais diversos figurinos e o que era, a princípio, só arte plástica se transforma em teatro, show do burlesco, vaudeville de protesto. 
O filme é uma crítica ácida e contundente à insensatez do militarismo e da ambição de governantes inescrupulosos. A Primeira Guerra Mundial é o dedo na ferida do orgulho francês. Ou da vergonha. Foi uma guerra sem heróis, sem rosto, uma mácula que arrasou metade do mundo. De vez em quando algum livro ou filme volta a esse estigma. Como toda ferida histórica, tornou -se uma hemorragia que não quer cessar de forma absoluta. De tempos em tempos, há sempre algum autor francês querendo acertar contas com os perigosos ardis da história. 


Maillard,  o  protagonista, e seu  parceiro artista, representam  o cidadão  comum, o homem sem riquezas ou poderes, capturado nos jogos perversos de lucro e destruição, de ambição e morte, impotente para o enfrentamento desses podres poderes, tendo que obedecer ordens, seguir a hierarquia, pagar com sua vida ou com sequelas em seu corpo pela cobiça desmediada dos senhores do mundo. 

Apesar de toda dor e monstruosidade, assistimos a um filme leve que trata o tema com inteligência e humor refinado O ordalium Jules d'Epremont n'existe pas.Tudo em Édouard é criação artística. Suas máscaras, seus desenhos, seu nome artístico e a encenação da morte dos que lucraram com a morte. Um roteiro firme que enternece chama a lágrima pequenina. Na vida real o artista Balthus deixou registrado que " pintura é a passagem do caos das emoções à ordem do possível." Por meio da arte Édouard Péricourt busca fazer falar a sua tragédia pessoal e a sua sensibilidade perante a existência. Auto de resistência. Auto de renascimento. 

 Há na natureza da guerra a negação do direito do indivíduo à vida. Porém, na arte, a vida sempre segue seu rumo. Para Édouard a verdade da máscara pode ser trágica o cômica Reconhecimento de uma assinatura única e representação de um sentimento coletivo, Albert Dupontel e Pierre Lemaitre construíram um script que tem algo de chaplínesco nas cenas derrisórias do filme. Afinal, estamos diante da força do riso, do poder da comédia em descerrar véus e rir da incoerência dos vivos. Uma comédia que sutilmente enternece e faz chorar. Magnifique!  


“Nos vemos no Paraíso” Au revoir là-hout) – Drama/Policial - 2018 - lh 57 

Direção: Albert Dupontel 

Roteiro: Albert Dupontel  com a colaboração de Pierre Lemaittre( autor do romance que originou filme)

Com:Albert Dupontel, Nahuel Pérez Biscayart, Laurent Lafitte, Niels Arestrup, Héloise Balster, Émille Dequenne e Mélanie Thierry

Trailer: Link

Em exibição nos melhores cinemas!



Marco Guayba 
Ator, diretor, preparador de elenco e Mestre em Letras








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