Em comemoração aos 20 anos da Cia do Latão foi realizada essa montagem qualificada pelo grupo como peça ensaio. Não é propriamente uma peça de Tchecov, mas um híbrido que utiliza como base o texto do autor russo para poder falar de nossa realidade tupiniquim. Atores e músicos-atores fazem no palco uma celebração - melancólica, por um lado, e esfuziante, por outro - da trajetória da Cia e uma espécie de revisão crítica, no sentido político, do que foi feito no palco e nas telas no Brasil desde o século passado até agora. A ética como ação do ser humano no meio social também é posta em questão. Mesmo se passando na transição do regime militar para a democracia, a peça e extremamente atual. E põe em cheque o que somos, o que estamos fazendo nesse impasse chamado Brasil.
Uma família, de pais separados, reúne-se para comemorar o aniversário do filho estudante de medicina. O pai (Jonas) é um cineasta brilhante, mas incapaz de se adaptar à vida burguesa. A mãe (Teresa) é uma atriz famosa que vive os horrores de se perder entre o que é drama no palco e o que é o fogo da vida. O tio (Pio) é um hippie já com certa idade que só se interessa em fazer música. O filho (Antônio) tem espírito de artista, quer a liberdade de escolher o seu destino e arriscar-se em seus sucessos e seus fracassos. A amante do cineasta (Ivone), trinta anos mais jovem que ele, tem dificuldade de situar-se nesse ambiente conturbado pelo emaranhado de desejos e frustrações que envolve todo aquele grupo. O namorado da atriz (Afonso) é um jornalista que acredita que a sua verdade de jovem de classe média, que supostamente se fez por si mesmo, explica tudo no mundo. A caseira (Maria) é uma mulher tímida, descendente de índios, que descobre uma sexualidade ardente e a violência sórdida que há na sociedade dita civilizada.
Teresa ao referir-se ao seu trabalho no teatro, compara-o com a vida e conclui que "ainda me assombra a estranheza dos lugares do mundo". Esse é um dos pontos-chave da peça; o lugar vazio, aberto, carente de significação. O "lugar nenhum" está presente nos dramas e conflitos de cada personagem e na dimensão trágica e bizarra que atualmente marca nossa jovem democracia. E como se cada um deles se perguntasse “para onde ir”. Mesmo as pessoas mais definidas em seus interesses e ideologias, como o voraz cineasta Jonas e o arrogante jornalista Afonso, encontram essa vacância no embate com o outro. Teresa e Antônio, mãe e filho, expõem essa chaga como uma ferida aberta, que sangra sentimentos e jorra ímpetos incontornáveis que não permitem nenhuma certeza sobre o resultado de seus atos. Helena Albergaria compõe um duo magistral com João Filho. Ney Piacentini é um show à parte, sua cena solo é um dos melhores momentos do espetáculo, uma devastação cirúrgica do senso comum através da forma cênica.
A peça fala do que a peça é. Jonas quer escrever um roteiro sobre a irrealização brasileira e proclama que sua doença chama-se Brasil. O humor como roteiro das situações mais descabidas. Teresa quer proteger seu filho da Via Crucis, coisa tão difícil de ser concretizada quanto uma salamandra conceder a felicidade a uma nação. Antônio busca o reconhecimento, o aplauso, antes do trabalho, antes da jornada, com todos os seus méritos e enganos, ser posta em cena em sua plenitude artística. Maria canta a música dos Guarani Mbya. E nossa intimidade é que nos parece estrangeira.
Ao fim do espetáculo percebemos um teatro em crise, um cinema preso em suas armadilhas comerciais, um país que ainda não descobriu como olhar-se no espelho. A presente encenação da Companhia do Latão resgata, com suas armações ferinas e suas armas cénicas, algo que era presente no teatro grego em seus inícios, ou seja, lançar uma questão para a cidade.
Teatro: criação livre a partir de Anton Tchecov
Dramaturgia e Direção: Sérgio de Carvalho
Assistente de direção:Maria Livia Goes
Cenografia· Valdeniro Paes e Sérgio de Carvalho
Figurinos e colaboração na cenografia: Carlos Escher
Iluminação: Sérgio de Carvalho
Elenco: Helena Albergaria, Ney Piacentini, João Filho, Érika Rocha, Beatriz Bittencourt, Ricardo Teodoro e os músicos Cau Karam e Nina Hotimsky
CCBB-RJ - Teatro lll
Quanta a domingo às 19h30
Até 06/08/2018
Marco Guayba
Ator,diretor,preparador de elenco e Mestre em Letra
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